O loiro deixara que o corpo fosse ao chão com o impacto que
atingira seu rosto que ardia na exata marca da mão de seu pai adotivo. Não
ouvia sequer uma palavra que este gritava furiosamente enquanto chutava-lhe com
o ódio claro no olhar. De longe a pequena podia ser vista por Mihael, olhando a
cena assustada enquanto apertava a boneca por entre os braços... A mesma boneca
que ele havia a dado há anos e ela sempre segurava como uma cruz quando as
brigas entre os dois homens da casa ocorriam. Há tempos a única pessoa da casa
que tinha coragem de separar as brigas, tão violentas, havia morrido em uma
tragédia pela qual o loiro assumira a culpa e, as brigas que ocorriam com
frequência acabaram por ficar mais violentas, sendo o término desta apenas
quando o sangue encharcava o piso.
A respiração ofegante dos dois lados da luta ecoavam por
entre as quatro paredes do quarto bagunçado. O chocólatra fitava o chão com
ódio enquanto tentava se levantar, aos tropeços, para fechar a mala a qual lhe
fora designada antes de toda a discussão ter início. Havia escondido algumas
barras de chocolate por entre as roupas dobradas de qualquer maneira, além de
recursos que poderiam o auxiliar no trajeto que faria na cidade que conhecia há
pouco tempo. Sabia que este era o momento certo para partir, pedia perdão
silenciosamente para a pequena garotinha ao cruzar o olhar com sua face
chorosa. Os dois nunca poderiam se despedir, sabiam disso, e tal fora o motivo
para ele ter saído da casa de classe média-alta o mais rápido possível.
Os grandes portões foram fechados com violência quando
chegara à calçada, podendo ouvir alguns poucos gritos enquanto se desaproximava
em tropeços atrapalhados. Lutava contra a vontade de chorar a cada passo,
andando cabisbaixo de forma que não vissem estampada em sua expressão à derrota
que acabara por ter com tanta facilidade depois de anos suportando um futuro
que sequer deveria ter tido. Andou o resto do dia, permitindo-se parar em uma
praça qualquer ao estar cansado o suficiente, deixando os grilos cantarem
livremente enquanto se sentava em um banco de concreto. Curvou-se sobre as
próprias pernas e deixou que as lágrimas por fim molhassem suas bochechas
alvas, soluçando vez ou outra enquanto os cabelos loiros grudavam em suas
bochechas. Seu corpo doía por inteiro e nada mais passava por sua mente além de
toda a tortura pela qual havia passado durante tanto tempo até enfim se
libertar... Estava livre, porém, sozinho e perdido em meio a uma selva de
pedra. Soluçou e levou as mãos até a própria cabeça a qual latejava, algo que
sempre ocorria quando pensava demais sobre algo. Apenas uma pessoa fazia a dor
passar, e ela não estaria ali nunca mais.
— Perdoe-me por interromper este seu momento sentimental. —
dissera uma voz a qual fizera que o loiro pulasse no bando, caindo no chão
devido ao susto que a figura a sua frente causara. Analisou-o dos pés a cabeça
antes de engolir em seco — Mas esse banco é meu e eu preciso dormir. — dissera
o ruivo enquanto colocava a mala do outro no chão e ajeitava-se no concreto sujo
que compunha o assento.
— O que diabos...? — falara o loiro enquanto se levantava e
continha a raiva que aos poucos brotava em seu interior, levantara o punho,
porém, deixara que este caísse ao lado do corpo ao ver a estrutura corporal do
menor. Era possível ver os ossos de seu rosto assim como sua caixa torácica
através da blusa fina, listrada em preto e branco, a qual trajava. Conteve
qualquer impulso momentâneo ao conseguir ver os olhos do franzino garoto
através das lentes do goggle antigo o qual utilizava. As íris verdes compunham
seus olhos cansados e, aparentemente, sofridos.
— Ah, não está acostumado com isso, burguês? Nunca viu
alguém dormir na rua? — ao ver o maior negar levemente com um gesto de cabeça o
ruivo começara a rir, sentando-se no banco no exato momento em que um soco
atingira-lhe o estômago, fazendo com que se curvasse sobre o abdome, arfante
enquanto sentia a barriga vazia reclamar pela dor a qual fora adicionada a fome
— Que merda é essa, garoto? Está ficando louco? — levantou-se com dificuldade
enquanto pronunciava as palavras em berros, socando o rosto do burguês com
força, fazendo com que este caísse ao chão. Iria rir, mas fora impedido pelos
soluços manhosos, entre lágrimas, do loiro que levava as mãos ao rosto,
escondendo-o. Estendeu a mão com receio, ajudando o desconhecido a se levantar
enquanto preparava mentalmente as desculpas que teria de falar diversas vezes,
como lhe fora ensinado. — O que faz aqui, afinal? — perguntara com a voz rouca,
sentindo o corpo hesitar em cada movimento enquanto ajudava-o a se sentar no
banco.
— Como se já não bastasse eu ter apanhado durante anos. —
murmurou o chocólatra, de forma que ignorasse claramente a pergunta — Sou
expulso de casa e ganho de presente o soco vindo de um aspirante a aviador...
Isso se ainda tiver pulmões nessas condições. — concluíra rapidamente ao sentir
o cheiro de nicotina vindo do ruivo que retirava um maço de cigarros do bolso
da calça desgastada. Vasculhara o bolso da própria calça e suspirara aliviado
ao encontrar a pequena barra de chocolate na qual dera uma simples mordida...
Sentia seus problemas pararem de pesar enquanto o gosto doce e prazeroso do
simples doce invadia seu paladar aguçado.
— Bem-vindo ao clube. — murmurou o garoto dos goggles
enquanto acendia um fósforo passando este no concreto rapidamente, logo fazendo
com que a chama começasse a queimar a ponta do cigarro o qual já pendia em seus
lábios. Tragou algumas vezes, deixando-se ouvir o silêncio da praça, antes de
soltar a fumaça branca no ar e observa-la se dissipando na brisa gélida que
preenchia a noite — Também fui expulso de casa, sabe? Meus pais não gostavam de
cigarros e homossexualidade. — disse em tom de deboche enquanto recostava-se no
banco, tentando procurar mais alguém por entre o mato que crescia
desordenadamente por entre qualquer canto que não houvesse concreto.
Rapidamente desviara o olhar para o loiro, estendendo a mão enluvada pela
cobertura fina de couro enquanto deixava que um sorriso leve brotasse em seus
lábios — Meu nome é Matt.
— Mello. — dissera o maior enquanto apertava a mão do novo
conhecido, sorrindo fraco durante o processo enquanto sentia um pequeno calor
brotar no peito. Não estava sozinho, afinal.
— Isso parece aquele filme... Como era mesmo o nome? Ah
sim...! A dama e o vagabundo — falou sorrindo zombeteiro — No caso, você é a
dama. — completou rapidamente antes de sentir os tapas leves e rir alto junto
do maior que, ao parar de rir, manteve o sorriso verdadeiro que não mostrava há
muito tempo.
No fundo, os dois sabiam, que aquele seria o início de uma
grande amizade.