domingo, 23 de junho de 2013

O loiro deixara que o corpo fosse ao chão com o impacto que atingira seu rosto que ardia na exata marca da mão de seu pai adotivo. Não ouvia sequer uma palavra que este gritava furiosamente enquanto chutava-lhe com o ódio claro no olhar. De longe a pequena podia ser vista por Mihael, olhando a cena assustada enquanto apertava a boneca por entre os braços... A mesma boneca que ele havia a dado há anos e ela sempre segurava como uma cruz quando as brigas entre os dois homens da casa ocorriam. Há tempos a única pessoa da casa que tinha coragem de separar as brigas, tão violentas, havia morrido em uma tragédia pela qual o loiro assumira a culpa e, as brigas que ocorriam com frequência acabaram por ficar mais violentas, sendo o término desta apenas quando o sangue encharcava o piso.
A respiração ofegante dos dois lados da luta ecoavam por entre as quatro paredes do quarto bagunçado. O chocólatra fitava o chão com ódio enquanto tentava se levantar, aos tropeços, para fechar a mala a qual lhe fora designada antes de toda a discussão ter início. Havia escondido algumas barras de chocolate por entre as roupas dobradas de qualquer maneira, além de recursos que poderiam o auxiliar no trajeto que faria na cidade que conhecia há pouco tempo. Sabia que este era o momento certo para partir, pedia perdão silenciosamente para a pequena garotinha ao cruzar o olhar com sua face chorosa. Os dois nunca poderiam se despedir, sabiam disso, e tal fora o motivo para ele ter saído da casa de classe média-alta o mais rápido possível.
Os grandes portões foram fechados com violência quando chegara à calçada, podendo ouvir alguns poucos gritos enquanto se desaproximava em tropeços atrapalhados. Lutava contra a vontade de chorar a cada passo, andando cabisbaixo de forma que não vissem estampada em sua expressão à derrota que acabara por ter com tanta facilidade depois de anos suportando um futuro que sequer deveria ter tido. Andou o resto do dia, permitindo-se parar em uma praça qualquer ao estar cansado o suficiente, deixando os grilos cantarem livremente enquanto se sentava em um banco de concreto. Curvou-se sobre as próprias pernas e deixou que as lágrimas por fim molhassem suas bochechas alvas, soluçando vez ou outra enquanto os cabelos loiros grudavam em suas bochechas. Seu corpo doía por inteiro e nada mais passava por sua mente além de toda a tortura pela qual havia passado durante tanto tempo até enfim se libertar... Estava livre, porém, sozinho e perdido em meio a uma selva de pedra. Soluçou e levou as mãos até a própria cabeça a qual latejava, algo que sempre ocorria quando pensava demais sobre algo. Apenas uma pessoa fazia a dor passar, e ela não estaria ali nunca mais.
— Perdoe-me por interromper este seu momento sentimental. — dissera uma voz a qual fizera que o loiro pulasse no bando, caindo no chão devido ao susto que a figura a sua frente causara. Analisou-o dos pés a cabeça antes de engolir em seco — Mas esse banco é meu e eu preciso dormir. — dissera o ruivo enquanto colocava a mala do outro no chão e ajeitava-se no concreto sujo que compunha o assento.
— O que diabos...? — falara o loiro enquanto se levantava e continha a raiva que aos poucos brotava em seu interior, levantara o punho, porém, deixara que este caísse ao lado do corpo ao ver a estrutura corporal do menor. Era possível ver os ossos de seu rosto assim como sua caixa torácica através da blusa fina, listrada em preto e branco, a qual trajava. Conteve qualquer impulso momentâneo ao conseguir ver os olhos do franzino garoto através das lentes do goggle antigo o qual utilizava. As íris verdes compunham seus olhos cansados e, aparentemente, sofridos.
— Ah, não está acostumado com isso, burguês? Nunca viu alguém dormir na rua? — ao ver o maior negar levemente com um gesto de cabeça o ruivo começara a rir, sentando-se no banco no exato momento em que um soco atingira-lhe o estômago, fazendo com que se curvasse sobre o abdome, arfante enquanto sentia a barriga vazia reclamar pela dor a qual fora adicionada a fome — Que merda é essa, garoto? Está ficando louco? — levantou-se com dificuldade enquanto pronunciava as palavras em berros, socando o rosto do burguês com força, fazendo com que este caísse ao chão. Iria rir, mas fora impedido pelos soluços manhosos, entre lágrimas, do loiro que levava as mãos ao rosto, escondendo-o. Estendeu a mão com receio, ajudando o desconhecido a se levantar enquanto preparava mentalmente as desculpas que teria de falar diversas vezes, como lhe fora ensinado. — O que faz aqui, afinal? — perguntara com a voz rouca, sentindo o corpo hesitar em cada movimento enquanto ajudava-o a se sentar no banco.
— Como se já não bastasse eu ter apanhado durante anos. — murmurou o chocólatra, de forma que ignorasse claramente a pergunta — Sou expulso de casa e ganho de presente o soco vindo de um aspirante a aviador... Isso se ainda tiver pulmões nessas condições. — concluíra rapidamente ao sentir o cheiro de nicotina vindo do ruivo que retirava um maço de cigarros do bolso da calça desgastada. Vasculhara o bolso da própria calça e suspirara aliviado ao encontrar a pequena barra de chocolate na qual dera uma simples mordida... Sentia seus problemas pararem de pesar enquanto o gosto doce e prazeroso do simples doce invadia seu paladar aguçado.
— Bem-vindo ao clube. — murmurou o garoto dos goggles enquanto acendia um fósforo passando este no concreto rapidamente, logo fazendo com que a chama começasse a queimar a ponta do cigarro o qual já pendia em seus lábios. Tragou algumas vezes, deixando-se ouvir o silêncio da praça, antes de soltar a fumaça branca no ar e observa-la se dissipando na brisa gélida que preenchia a noite — Também fui expulso de casa, sabe? Meus pais não gostavam de cigarros e homossexualidade. — disse em tom de deboche enquanto recostava-se no banco, tentando procurar mais alguém por entre o mato que crescia desordenadamente por entre qualquer canto que não houvesse concreto. Rapidamente desviara o olhar para o loiro, estendendo a mão enluvada pela cobertura fina de couro enquanto deixava que um sorriso leve brotasse em seus lábios — Meu nome é Matt.
— Mello. — dissera o maior enquanto apertava a mão do novo conhecido, sorrindo fraco durante o processo enquanto sentia um pequeno calor brotar no peito. Não estava sozinho, afinal.
— Isso parece aquele filme... Como era mesmo o nome? Ah sim...! A dama e o vagabundo — falou sorrindo zombeteiro — No caso, você é a dama. — completou rapidamente antes de sentir os tapas leves e rir alto junto do maior que, ao parar de rir, manteve o sorriso verdadeiro que não mostrava há muito tempo.

No fundo, os dois sabiam, que aquele seria o início de uma grande amizade.